Uma Garotinha
Cássia Eller
morreu. Os colegas apressados, aqueles que buscam o sensacionalismo
do furo sem ligar se for uma furada – afinal, não é
com eles e, no Brasil, crime de imprensa não pegou – já
lascaram em garrafais a causa mortis: overdose. Só dias depois
o resultado da autópsia desmentiu a manchete, mas os jornais
deram a nota em corpo miúdo: notícia como aquela não
vendia.
A
cantora tinha parado com as drogas e estava numa fase pessoal muito
over over, aproveitando as coisas boas da vida com sua companheira e
seu filho. Mas as pessoas de há muito a tinham rotulado, engavetado
em um cofrinho na cabeça estreita porque Cássia Eller,
por certo período – e basta! – "curtira"
droga. Como Renato Russo, Cazuza e tantos outros estigmatizados por
suas opções ou suas preferências num determinado
instante. Mas Cássia Eller agora está morto e não
pode "fazer uso do direito de réplica".
Meu
amigo Arli Rubin, entusiasta da dança clássica e também
da música popular, descobriu que as Lojas Americanas estavam
vendendo baratíssimo o CD Acústico, da Cássia,
em uma embalagem conjunta com a fita de vídeo do show. Corremos
até lá e adquirimos esta obra-prima, a derradeira, da
grande cantora, para muitos, a melhor dos últimos 20 anos do
pop-rock nacional, Rita Lee da hora.
Graficamente,
o disco é muito bonito, estampando na capa uma foto de Cássia
em plena ação, com o cenário do show ao fundo,
florido de rosas gigantescas em sua mais inspirada iluminação:
vermelhas, basicamente, abrindo um quase nada ao ouro. O encarte do
CD traz todas as letras e algumas fotos reveladoras dos bastidores do
show. Em uma delas, Cássia está tomando mate – o
que bastaria para nos conquistar se já não o tivesse feito
desde o primeiro acorde.
O
disco (e o show) abre com uma canção francesa, Non, je
ne regrette rien, que Cássia canta como a Edith Piaf brazuca
que era. Depois, uma sucessão de músicas de alta qualidade,
matando a pau na escolha do repertório. Tem Cazuza, Nando Reis,
Marisa Monte, Chico Buarque, Renato Russo, Gil, Lennon e McCartney,
Os Mutantes e Xis.
Gosto
muito das composições do Titã Nando Reis e acho
que calhavam perfeitamente com o timbre e a atitude de Cássia.
Se tivesse que escolher uma de tantas obra-primas, ficaria com Relicário,
que, inclusive conta com a participação de Nando. A versos
tantos, diz a letra: "Por que está amanhecendo? / Peço
o contrário, ver o sol se pôr. / Por que está amanhecendo?
/ Se não vou beijar seus lábios quando você se for?"
E
se foi. Já se foi e nem pudemos nos despedir – como sempre
aliás, com os que nos cercam e, de repente, não mais.
Penso, ao contemplar mais uma vez o rosto maroto de Cássia Eller
na capa linda, que talvez ela ainda fosse "uma garotinha".
Talvez lhe faltasse mesmo "um pouco de malandragem" para que
pudesse preservar-se diante da "realidade": ela sonhava que
ainda tinha "uma tarde inteira". Mas o "ônibus
da escola", que esperava "sozinha", não passou.
Ou já tinha passado. O duro em ouvir e ouvir e ouvir o Acústico
é essa sensação amarga de passado.
Arranca
Rabo
O
Dr. Boitatá, irritado com as críticas do jovem de que
o seu fogo é fátuo, sobe nas tamancas:
– Tu és um guri perto de
mim!
O jovem, nem tão jovem assim que
já não aprendesse um pouco da malícia dos mais
velhos, lasca:
– Guri, mas te arreganho as hemorróidas!
(Nota explicativa de Don Bagayo y Balurdo:
“Costuma-se chamar de ‘pimentinha’, carinhosamente,
porém com raiva surda da diaba, a criança arteira em demasia
e, ninguém o ignora, pimenta faz mal para quem sofre da supracitada
enfermidade nas pregas anais. Logo, o jovem quis dizer ao Dr. que tinha
potencial para incomodá-lo. O fronteiriço é simples;
simples e profundo.” Mas o filósofo é suspeito,
fronteiriço dos três costados, Nova Hereford, a Banda Oriental
e Corrientes.)
Do
Estrabismo
Vejo
Mike Tyson fantasiado de cantor e me dá uma pena... Forte desse
jeito, bem que daria um bom pugilista. Então lembro de suas performances
e encontro um tema, a questão que sempre me vinha à mente,
clarificada quando do fiasco diante de Evander Holyfield. Ei-la: a causa
das vitórias de Tyson nas lutas anteriores foi a mesma de sua
derrota para Holyfield: o olhar.
Criou-se em torno de Tyson a imagem da fera. A biografia ajudou, verdade.
Criança miserável das ruas novaiorquinas, delinqüente
juvenil com pós-graduação em gangues, um belo dia
é recolhido pelo bom velhinho Cus D’Amato, que canaliza
toda sua agressividade e sua experiência em tudo o que não
presta para a “nobre arte” – o esporte mais sujeira
do submundo.
Dá certo e o bad-boy torna-se campeão,
lutando como nos becos, movendo a raiva suas respeitáveis munhecas.
Fica rico, casa com uma tetéia como a Robin Givens, mas continua
a agredir Deus e o mundo: quebra carros, bifeia a mulher a três-por-quatro...
Finalmente separa-se e pode meter a mão – com braço
e tudo! – à vontade, conseguindo – como o nosso Charles
Anjo 45 – descolar um retiro espiritual atrás das grades,
de onde sai convertido, cada vez pior.
Os marketeiros nem tiveram muito trabalho
para forjar o mito: o dente de ouro estrategicamente colocado no meio
do sorriso, ao lado da porteirinha; o discurso (?) de cinema mudo concentrado
em caras e bocas agressivas; os trajes despojados (e pretos) com que
subia ao ringue....
Umas coisinhas trabalhadas aqui e ali que contaram com grande ajuda
da matéria bruta.
Aquele jeito de tigre enjaulado como caminhava
entre as cordas antes do gongo inicial, foi repetido mais uma vez naquele
fatídico sábado. O “mediador” chamou os “contendores”
ao centro do “quadrilátero” e Tyson, como sempre,
olhou feio para o outro.
O narrador da Globo berrou: “Holyfield
não encarou Tyson!”
Galvão Bueno, como bom animador de rodeio, interpretava o sentimento
dos espectadores, acostumados com a (talvez) demonstração
de medo dos adversários (os caubóis) no instante de acareação
(com o touro brabo) que precede as lutas (o abrir do portão).
A Zero Hora do dia, mancheteando o “combate” daquela noite,
dizia: “Holyfield desafia o olhar de Tyson”. Como Holyfield
não desafiou o tal olhar, a exemplo de outros derrotados, Galvão
pensou: “Bueno, é mais um que vai beijar a lona”.
Na verdade, todo mundo achava que o desafiante
não teria chance. As apostas estavam 8 por 1 em favor de Tyson.
Zero Hora, falando de um “dos combates preliminares”, escrevia
que Michael Moore subia ao ringue “pensando no futuro, ou melhor,
em Mike Tyson”, como se Holyfield já tivesse sido derrotado.
Na mesma página, o jornal menciona um problema cardíaco
que Holyfield teria e escreve: “para muitas pessoas ligadas ao
boxe, ele corre um iminente risco de vida diante do indomável
Tyson. O receio de uma possível tragédia era tanto que...”
Afinal, o velho Mike “não precisou suar muito para derrotar
seus oponentes (...), bastou fitá-los”.
Eles caíam, provavelmente, “de
susto”.
Por tudo isso, repito que a sublime razão
das vitórias de Tyson nas lutas anteriores foi a mesma de sua
derrota para Holyfield: o olhar.
Evander não flertou com Mike, que
é muito feio, enquanto que Mike cometeu a temeridade de flertar
com Evander, que é muito mais feio. Mike Tyson, coitado, percebeu
naquele átimo que a cara de Holyfield não poderia ser
batida nem por Charles Laughton, como o Corcunda de Notre Dame, ou por
Silvester Stalone, como ele mesmo. Tyson perdeu ali, porque, como todos
sabemos, as grandes lutas são decididas num olhar – ou
num piscar de olhos.
(O texto que acabaram de ler é
uma homenagem a Jean Paul Sartre e a Cristiana Oliveira, que jamais
topariam tal violência olho-no-olho.)
Xiquexique
Essa eleição
aí, madrugada afora, só podia dar baile.
Forró do bom, maxixento, coxa com coxa, “Ele tá
de olho é na butique dela...” E gira-gira, troca-troca,
“Ele tá de olho é na butique dela...” Mas,
tão pensando o quê? Com muito respeitio! Vishhh...
Já dizia João Cabral, poeta de pena e pia, “Somos
muitos Severinos / iguais em tudo na vida: / na mesma cabeça
grande / que a custo é que se equilibra...” Confere?
“Certio.”
Muitos Severinos, “no mesmo ventre crescido / sobre as mesmas
pernas finas, / e iguais também porque o sangue / que usamos
tem pouca tinta.” Confere?
“Certio. Severino Xiquexique, sem tirar nem pôr. Do sangue
é que não sabemos se tem sangue e a cor...”
Mas vai sangrar o erário, inflar o próprio salário,
promover o baixo clero (dar um fim às igrejins, o bobo-rei-curumim),
criar novo Ministério, vetar, do estupro, o aborto (da Família,
o Ministério), anistiar o Frade morto, nomear Damião a
BR, pra não haver trem que erre...
“Iééé?”
E diz mais, que “home é home, home não é
mulhé”. Que é “ético”, e que
tem tico, saco roxo, “Eu digo e faço!”, que é
da terra do cangaço, leva a pexera consigo, quem não gostá,
busque abrigo, é amigo dos amigo, mas que tá aberto o
mercado.
“Puxa! E o presidente?”
Presidente, pra ele, é “Druta”, até bate fuça
com fuça, repara o cabelo, pouco, e a miséria do pescoço...
Inda bem que é patriota...
“Tem certeza abissoluta?!...”
Ué, e não era, o “Druta”?!... Mas tem o outro
nordestino.
“Somos todos nordestinos. Sul, oeste, norte, leste, tudo, tudo
severino.”
Sim, mas e o Druta atual?
“Ah, ficou fulo, afogou a farinha, tava fazendo uma boquinha...
Mas vai é botá os cachorro, ô mato que tem raposo!”
E vai fuçar na ferida?!
“Não dá, pois lhe farta o dedo.”
Unzinho, e os outros nove? Nenhum dos outros resorve?!
“Nenhum cabe na ferida. Com o dedo, foi-se a valida.”
João Cabral de Melo Neto, poeta de pena e pia, já dizia,
e estava certo, “Somos muitos Severinos / iguais em tudo na vida”.
E se ela nos machuca, nos frangalha, estrebucha, não há
uma melhor resposta “que o espetáculo da vida”, “Vê-la
brotar como há pouco / em nova vida explodida; / mesmo quando
é assim pequena / a explosão, como a ocorrida; / mesmo
quando é uma explosão / como a de há pouco, franzina;
/ mesmo quando é a explosão / de uma vida severina.”
“Não peguei, não peguei bem. Falou em botá
os cachorro... Essa igualdade é canina?”
Canina, assim, de Baleia, a cachorra retirante, pequena e de nome grande.
Fosse de fato baleia, guardava a família inteira no íntimo
aconchegante.
“Como a criança aquela, que instalou-se e acendeu vela?”
Talvez. Mas isso deu-se no Reino... no Reino do Era-uma-vez.
“Do gira-gira, do troca-troca?”
Não, não, e a história é longa, não
cabe em forró arretado. Só lhe digo que um partido, moço,
de trinta e picos, sonhava um sonho bonito.
“E acabou-se o que era doce?”
E quem lhe disse que é doce? O sonho é que nem a vida,
amarga e ardida é o que é – a vida e o que mais
não fosse.
Cócegas
no nariz
Antigamente,
mulher não fumava em público; era feio, ofensivo. Os homens
entendiam ser os únicos autorizados a tal prazer. Inventavam
as mais rotas desculpas: o tal cheiro ruim (mulher tem que recender
a perfume. Como beijá-las sem imaginar que osculavam com, brrrr!,
um homem?); o formato do cigarro, fálico o suficiente para tornar
o gestual feminino um escândalo (abrir o maço, como uma
bragueta celofanada, pegar o cilindro recheado de prazer, alisá-lo
entre os dedos, levá-lo à boca, comprimindo suave mas
firmemente a ponta, numa felação tabacuda, e, meu Deus!,
sorvê-lo com prazer inocultável, quase como um suspiro
engolido em golfadas lúbricas, para, então, nos jogar
na cara, em névoas inebriantes pelos buracos do rosto todo seu
intransferível deleite). Brandir cigarros e charutos, chupá-los,
não havia nada mais sensual antigamente. Por isso não
era de bom tom mulher fumar em público. Mas, tinhosas, algumas
o faziam, cientes de seu enorme poder. Outras, preferiam fumar escondido,
evitando maiores problemas com maridos, pais, irmãos. Para contrabalançar,
especialistas fumavam charuto soltando gostosas baforadas pela vagina.
Os tempos mudaram, felizmente, e hoje as mulheres já podem fazer
tudo o que os homens fazem – ou quase tudo. Elas saem sozinhas
à noite, têm amores fortuitos, fumam, bebem, vomitam em
público, são recolhidas das sarjetas, desenvolvem doenças
antes quase que exclusivamente masculinas, enfim, como seres independentes
e não apêndices de alguém, as mulheres hoje podem
tudo – são, com todas as letras, poderosas. Só não
podem mesmo é mijar em pé – sem que, depois do ato
libertário, peguem balde, pano e água sanitária
e ajoelhem-se a limpar a cacaca que fizeram no chão, imagina,
o banheiro tem que estar brilhando. Seria um retrocesso a desautorizar
a ousadia.
Cada vez mais, no mundo desenvolvido, os fumantes são segregados,
vistos mesmo como criminosos. A ciência já provou que os
fumantes acabam não só com sua saúde, mas também
com a do vizinho. Logo, logo, fumar, também por aqui, será
visto com outros olhos. Por enquanto, os jovens pitam encarnando o homem
de Marlboro – jovem, não o simulacro da cama de hospital
–, sentindo-se superiores, desbravadores de um território
cheio de riscos, confiando no poder da nicotina para dominar a natureza
bravia, as cobras peçonhentas, os desfiladeiros gigantescos,
os horizontes mais longínqüos; os jovens pitam como quem
se dopa para sentir-se adulto, maduro o suficiente para enfrentar o
dia-a-dia, equipado o suficiente para torná-lo menos insosso
pelos prodígios da fumaça venenosa...
Mas, como diz a música antiga, são apenas “Smogeths
in your eyes”. Abrir os olhos no nevoeiro é como estar
nas nuvens, a ardentia queima os sonhos voadores. Soprar o cheiro que
obnubila, lembra outra música, menos antiga, de Bob Dylan, notório
fumante: “a verdade, amigo, está soprando com o vento”.
E com o vento, vem-nos a imagem do simulacro na cama derradeira (e uma
minha, particular, o pai fumando “Sentimental sem modess”,
quando o cardiologista tinha-lhe proibido qualquer um, “Nenhum,
Queiroga, mesmo com filtro ou de piteira!”).
Somos todos viciados, alguns de raciocínio. Às vezes tenho
vontade apenas de fechar os olhos e deixar que a brisa sadia do pampa
faça cócegas em meu nariz.
Jetsons
Uma
das mais notáveis mudanças no nosso panorama arquitetônico,
sinal exterior de uma mudança ainda maior, de costumes, acontece
nas casas bancárias. Quase todas criaram espaços que lembram
as historinhas de Os Jetsons, que, nos anos 60, já viviam no
“futuro”.
São espaços abertos, vazios no vasto centro e com vários
caixas eletrônicos, feito estátuas de metal ou leões-de-chácara
robôs de costas para a parede. Sem exceção –
e parece que é este mesmo o propósito – são
lugares frios que lembram banheiros públicos de aeroportos, como
se recentemente banhados de pinho-sol. O propósito é fazer
com que as pessoas se sintam mal ali dentro, como se sentiriam num túmulo
– e como muitas se sentem em um elevador daqueles de metal cinza,
sem nenhum vão de humanidade. O propósito é fazer
com que elas façam o que têm a fazer e chispem, dando lugar
a outros autômatos igualmente apressados e amedrontados com o
ambiente assustador.
O pior é que as pessoas precisam ir a esses lugares periodicamente
e são obrigadas a auto-atenderem-se em uma das implacáveis
máquinas, só porque os donos dos bancos, os senhores que
mais lucram no planeta, ganham mais ainda dessa forma. Quando uma das
maravilhas eletrônicas pifa, o cliente sofre a humilhação
de dirigir-se a um dos funcionários restantes, sob os olhares
de desprezo dos mais jovens, acostumados com jogos cibernéticos.
O funcionário, geralmente a contragosto, pois foi treinado para
pensar que as máquinas não falham e que, portanto, o cliente
é um imbecil – ou seja, ele mesmo é um imbecil,
pois se as máquinas não falham, sua função
não tem sentido, sua vida não tem sentido e ele, o imbecil,
não percebeu – a contragosto levanta e vai até lá
para, não poucas vezes, comprovar, com sua sapiência sem
porquês, que o cliente tem razão e que a máquina
não está funcionando.
Em muitas dessas agências, quando as pessoas preferem ser atendidas
por pessoas, cujo contato humano, além de resolver os problemas
(que só um técnico ou seja lá como se chamam esses
médicos de lata poderia sanar no caso de um tilt no caixa eletrônico),
também enriquece as experiências sociais de ambos; quando
optam pela fila dos “burros”, dos “defasados”,
enquanto esperam, corajosas, na fila vergonhosa, ainda são abordadas
por algum funcionário-padrão que fica perguntando o que
vão fazer, se não preferem passar nos robóticos
leões-de-chácara. As pessoas optam por tratar com pessoas
e não com máquinas e ainda recebem a pressão para
que mudem de idéia e vão lá engrossar as outras
filas impessoais, que, quanto mais engrossam, engrossam mais outras
filas, as dos bancários desempregados pelo sistema calculista.
Esses bolichos procuram adequar-se ao que o mercado “lá
fora” está fazendo, até porque, em sua maioria,
são de “lá de fora”. Gastam rios de dinheiro
propagandeando sua modernidade e os benefícios do “self-service”,
ganhando em troca, mares, oceanos de lucros. Esta é sua versão
da modernidade: a mesma velha ambição desmedida de encher
as burras. Muda o sotaque do algoz, muda o layout do matadouro, mas
é sempre a mesma sala azulejada com seus cabides-ganchos e a
assepsia sanguinolenta de pinho-sol. Até os leões-de-chácara
estão ali, e ainda mais terríveis, pois não nos
podem ouvir e nos emudecem com sua surdez, nos cassam a palavra, nos
roubam mais este sonho: o sagrado direito de argumentar. Se o homem
“é na linguagem”, como dizia Barthes, enfim os bancos,
despudoradamente, estão assumindo sua desrazão. Consentâneos
com a época, diga-se.
Gays
Estava
em Porto Alegre quando da Passeata do Orgulho Gay, que tomou conta da
Redenção. É impressionante a capacidade camaleônica
de certas pessoas, que, por obra do transformismo, tornam-se seres diferentes
do que são no dia-a-dia e protagonizam um grande show. Milhares
de gays, lésbicas e simpatizantes envolveram com seu arco-íris
um domingo sombrio e gelado. Encontrei umas 30 Carmem Miranda, pretas,
brancas, cafusas, mamelucas; altas, baixas, médias; magras, gordas,
nem tanto; jovens, quarentonas, anciãs. A mais impressionante
deveria medir 1,90, com o tamanco. Toda de vermelho, realçava
suas pernas de zagueirão com uma abertura na saia justa até
quase o meio das coxas. Depiladíssima e maquiadíssima,
nem sombra de barba e pêlos para compensar os cílios inacreditáveis
e as sobrancelhas cuidadosamente desenhadas. O batom vermelho-sangue
pintava lábios excessivamente carnudos, como se a moça
levasse na boca uma rosa eternamente a desabrochar.
Em épocas do politicamente correto, difícil achar entre
os freqüentadores do Brique alguém que não simpatize
com a passeata. Os homossexuais já viveram épocas piores,
sem dúvida. Mas, não nos enganemos, o preconceito ainda
vigora, insidiosamente, às vezes mal escondido por detrás
de declarações políticas – principalmente
quando quem fala detém cargo público. Os participantes
do show, naquele momento, fantasiados, caracterizados, como que embandeirados
por sua condição, atraem sorrisos e benevolências.
Os transeuntes assistem a tudo como se estivessem em um sambódromo.
O problema é que, na segunda-feira, acabado o carnaval, os protagonistas
da Passeata do Orgulho Gay, na maioria das situações,
são forçados a esconder sua condição, sob
pena de serem alvos de brincadeiras maldosas, chacotas e grosserias
de todas as espécies. Resta-lhes recolherem-se ao “armário”
como forma de sobrevivência. Poucos locais, mesmo em uma cidade
como Porto Alegre, aceitam a convivência com homossexuais de maneira
respeitosa e civilizada.
O difícil, em uma cultura machista como a nossa, é não
ter preconceito. O jeito é dominá-lo sempre que ameaçar
sair da toca. Grandes mitos do cinema, galãs que faziam as mocinhas
sonhar eram gays, como Rock Hudson e Montgomery Clift, que aliás,
sofreram a vida inteira por não poderem externar sua preferência
sexual, sendo que o segundo, deprimido, suicidou-se. Hoje, muitos ídolos
já admitem publicamente sua homossexualidade, o que tem ajudado
seus iguais não famosos a serem melhor aceitos em suas comunidades.
Mas ainda há muito a fazer contra a intolerância de qualquer
espécie – sexual, racial, ideológica, etc. Imaginem
que a idéia escandalosamente original de meu amigo A.R. de criar
uma escola de balé no Mariano Pinto, no pleno nada pampeano,
já está sendo minada por todos os lados, a ponto dele
adiar o projeto para época mais propícia. De que natureza
é tal intolerância? O que temem os inimigos da arte de
Nureiev? Será que lembram sua origem soviética e temem
uma espécie de “aparelho Bolshoi”? Quem vai saber...
Brincadeiras à parte, tenho para mim que o ser humano feliz tem
necessariamente orgulho de ser o que é. Se os gays ainda não
conseguiram expandir essa felicidade explícita na passeata para
os demais dias do ano, é que a sociedade ainda não pode
orgulhar-se de ser o que é.
Jolie
Ah
os livros dos “anos loucos” de Hemingway e Fitzgerald!.
Um deles, em especial, O sol também se levanta, do avô
da Muriel, se passa basicamente na Espanha, na Festa de San Fermín,
que acontece todos os anos em Pamplona. Durante uma semana, touros são
soltos em uma rua antiga e estreita, onde locais e turistas acotovelam-se
para toureá-los nos 850 metros da corrida, sem fuga possível,
a não ser que consigam chegar na praça antes deles e,
então, pular para as arquibancadas. Todos os anos a festa deixa
inúmeros feridos: os “anos loucos” continuam, portanto.
Vejam essa menina, Angelina Jolie. Pego no vídeo um filme qualquer
(pelos seus lábios, entonces...) que protagonizou, Lara Croft:
Tomb Raider, baseado em um videogame, dizem que muito popular. Comparam
Lara com Indiana Jones, só que com menos roupa e muito mais voluptuosidade.
Os produtores pensaram em vários nomes para o papel, mas entenderam
que nenhuma das outras, nem mesmo a Zeta-Jones, possuía a sensualidade
de Jolie associada à necessária rebeldia e independência,
qualidades que definem Lara Croft. (Tenho opinião diversa, para
variar, e, não quanto a Zeta-Jones, mas ficaria com a Elizabeth
Hurley, a Nicole Kidman ou a Jennifer Connoly para qualquer papel feminino,
da aventura ao drama, da comédia ao romance, porque mulher, para
mim, não são apenas lábios.) E o que a Jolie tem,
além dos olhos penetrantes são os lábios, que renderiam
um bom medalhão à francesa. Como o sensual está
associado aos lábios desde que o bebê começa a mamar
até quando o velho já não tem outra opção
a oferecer, em dobradinha com a língua, Jolie deve ter sido mesmo
a melhor escolha. Embora eu concorde com a própria que acredita
não ter um “corpo fabuloso”. Longe disso: as pernas
são compridas demais em proporção ao resto e lhe
faltam as curvas da cintura. Ah! – e tem pouca bunda e muito peito,
ainda que este último item não seja verdadeiramente um
prejuízo no que toca ao sensual, desarranjando um pouco, mas
só um pouco – não façamos com a jovem o que
nos fizeram no caso Polegadas X Marta Rocha –, o conjunto.
A Jolie é filha do John Voight (que co-protagonizou Perdidos
na Noite, com o Dustin Hoffman) e se tem notabilizado por fazer papéis
de “loucas”. Surgiu para o cinema em Gia, a manequim lésbica
e auto-destrutiva que incomodou o mundo da moda até morrer de
AIDS e, ultimamente, fez a amiga da Winnona Ryder em Garota Interrompida
– a amiga louquíssima, claro. Sua vida pessoal a recomenda
para tais papéis. Foi casada com Billy Bob Thorton, um ator que
poderia ser seu pai e que concorreu ao Oscar há uns dois ou três
anos por um papel de retardado em um filme (não recordo o nome)
que gira em torno de um avião cheio de dinheiro perto do lugarejo
gelado onde vive. Jolie dizia de Bob: “Conheci Billy e tudo mudou.
Em muitos sentidos, os fantasmas que nos perseguem são os mesmos”.
Com seu primeiro marido, casou vestindo calças pretas e uma blusa
branca, só que na blusa “escreveu com sangue” o nome
dele. Em entrevistas, menciona demais a palavra “sangue”,
às vezes quando fala de suas preferências sexuais. Se nos
“anos loucos”, a heroína era a alcoólatra
psicótica Zelda Fitzgerald; nos “anos dourados”,
a blondie movida a sexo e barbitúricos (minha amada) Marilyn
Monroe; hoje, temos Angelina Jolie como candidata a musa do que poderíamos
chamar de “anos vagos” – tanto porque não sabemos
bem o que está acontecendo no turbilhão global, quanto
pela vacuidade em que nos colocaram (nós, homens) os capitais
internacionais, novos senhores do mundo.
Pensando melhor, enquanto o texto escorria pela página branca
(qual sangue? esperma? coriza?), inclino-me a compreender os “loucos”
que enfrentam os touros em Pamplona. Os move o mesmo espírito
dos aventureiros dos “anos loucos”, aí inclusos Hemingway
e Fitzgerald, um tanto desconcertados pelas mudanças vertiginosas
da época (então o bulício metropolitano do início
do século). Os de agora, como aqueles, também buscam emoções
primitivas, que confrontem o bicho-homem com sua natureza, que o incluam
como parte dela – longe dos escritórios sem janelas e,
com as veias pulsantes de sangue, desafiando o perigo de viver: Angelina
Jolie.
Jovens
Volta
e meia escuto Jimmy Cliff, Rebel in Me, segundo minha interpretação,
uma espécie de hino à rebeldia bem intencionada, a da
paz e do amor, que mobilizou os jovens do mundo inteiro nos anos 60
e início dos 70.
Éramos jovens então, época em que formamos certas
convicções e princípios que levaremos pelo resto
da vida. O segundo setênio de nossa existência, quando nascem-nos
pêlos onde o pai da gente já tinha, espinhas no rosto e,
uau!, crescem os seios das meninas, creio ser o mais definidor do que
vamos ser, pois é a fase da transição mesma da
infância para a idade adulta. Eu, por exemplo, uau!, gostava de
ver, de boca aberta, os mamilos apontando nas camisetas das gurias,
que, uau!, seguiam a moda de não usar sutiã. Mas devo
confessar que encantavam-me mais as, uau!, bundinhas arrebitadas mal
e mal contidas pelas mini-saias, quando, nas reuniões-dançantes
regadas a Q-suco, ficávamos estrategicamente sentados em sofás
baixos só para podermos vê-las, as bundinhas, dançarem
os iê-iê-iês que ainda trazemos na memória
auditiva e, uau!, visual, guardados como em porta-jóias de laca
com motivos japoneses pintados, também “na onda”
da época. Até dei um para minha namorada de sempre, musical,
com uma bailarina que dançava no espelho.
Digressão feita, voltemos ao tema: a rebeldia. Um dos filmes
mais adoráveis que já vi chama-se Totalmente Selvagem,
de Jonathan Demme, com Jeff Daniels, Melanie Griffith (uau!) e Ray Liotta.
Tornou-se um filme de culto, também pela trilha sonora, que tem
John Cale, Laurie Anderson e David Byrne. A história pode ser
simplificada como a de “uma aventureira que leva um executivo
‘quadradão’ por uma viagem pelos Estados Unidos,
aparentemente sem rumo e sem fim”. Melanie está melhor
e mais bonita do que nunca. Mas quero pinçar um momento do personagem
de Daniels, quando o executivo, já gostando da coisa toda, porém
ainda não totalmente “selvagem”, diz à moça
naquele seu jeitão bobão, pouco à vontade, mas
pronto para o novo que se abria, que sempre fora um rebelde, que sempre
tivera um rebelde dentro de si e que o abafava em ternos e gravatas,
por conveniência. Apesar do jeitão boboca, Melanie faz
que acredita nele e continuam seu périplo – na verdade
uma viagem de acerto de contas com o passado, da parte dela, e de descoberta,
para o executivo.
Disse, linhas acima, que na adolescência formamos o “ser
que seremos” vida afora. Acontece com todo mundo, daí os
tais “conflitos de gerações” e as guinadas
que o mundo dá. Quando minha geração adolescia,
sonhávamos com um mundo melhor, tipo “paz e amor”
mesmo, o que incluía até vida em comunidades e uma “pá”
de pensamentos coletivistas. Pensávamos o outro como uma complementação
necessária e fundamental para a realização de nossos
sonhos, que eram do grupo todo. Ao menos acreditávamos que assim
era – eu, piamente. Na década que dei aula para adolescentes,
percebi que os jovens tinham outra postura, menos altruísta,
ao contrário, egoísta ao extremo, a ponto de perceberem
o outro como um concorrente (à vaga na Universidade, ao seu lugar
ao sol no mundo), quase um inimigo. Tal comportamento pode ser notado
no desapego que esses jovens, uma vez mais velhos, têm para com
suas raízes. É bem mais difícil encontrarmos nas
novas gerações os “amigos de infância”
que, nós, já nos 40 ou 50, ainda cultivamos como os melhores
e os mais íntimos.
Se transferirmos a ideologia da concorrência e da competitividade
para o macro do tecido social e, até, para as relações
internacionais, percebemos no que está dando e no quanto falhamos
(as gerações entradas nos “enta”) em tornar
realidade nossos sonhos e esperanças. Para que os mais jovens
tenham vaga idéia do tamanho da falha, nosso ídolo acadêmico,
entre outros, era um certo professor de Sociologia, autor da Teoria
da Dependência, chamado Fernando Henrique Cardoso (“O dia
em que esse cara for presidente...”, pensávamos, “Bá!”),
que, solidário, participara (professor da Sorbonne) do emblemático
Maio de 68, quando os estudantes enfrentaram o estabelecido basicamente
com sua juventude, isto é, como quem está na idade de
brigar por mudanças. Quanto a mim, continuo escutando Me gustan
los estudiantes, com a Mercedes Sosa, e esperando que os jovens de hoje
acordem a sua rebeldia adormecida, mas olhando para a frente, para o
horizonte largo, que desaparece porque a Terra é redonda.
Notícia
de Eisenstein
Ítalo
Calvino, em Por que ler os clássicos (Cia. das Letras, 1994),
diz que eles não devem ser lidos porque “servem”
para alguma coisa. De fato, os clássicos não têm
nenhuma utilidade imediata ou liquidez mercadológica –
nem as bolsas freqüentam!
“É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades
à posição de barulho de fundo”; aquilo que
“persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível”.
Para Calvino, “os clássicos servem para entender quem somos
e aonde chegamos”. São essenciais porque, nos meandros
das rebimbelas das parafusetas high-tech, ocupam-se da essência.
Como os livros, há também filmes clássicos, que
devem ser vistos pelas mesmas razões.
Sergei Eisenstein faria 100 anos em 1998. Estaria mais morto do que
vivo está. realizou grandes filmes. Um deles, O encouraçado
Potemkin divide com Cidadão Kane, de Orson Welles, a preferência
dos cinéfilos. Uma vez rodei o Potemkin para meus alunos, acolhido
com entusiásticos bocejos (ver link Certo Olhar). Acusei o golpe,
mas mantive-me firme. Nos últimos 30 anos, em nosso país,
as Humanas têm sido tratadas como coisa de quem não tem
o que fazer.
Na Veja de 19 de agosto, em matéria intitulada “Modelo
de Educação”, o repórter nos mostra “o
que há para aprender com o ensino superior americano, que ganha
metade dos prêmios Nobel”. Lá pelas tantas, diz ele
que “a essência da educação por meio do estudo
das humanidades” é “desenvolver o pensamento”
e não buscar alguma utilidade ou objetivo prático. Frescura,
dirão os robôs ventríloqüos. Só que,
continua o repórter, “cabeça feita não é
pouca coisa”, por isso as “empresas citadas na lista das
500 maiores pela revista Fortune não vão procurar administradores
ou engenheiros para os seus futuros quadros dirigentes, mas sim essas
pessoas ilustradas nos clássicos e que poucas disciplinas ‘práticas’
cursaram”.
(Nosso sociólogo em Brasília até poderia estar
dirigindo uma dessas top-500 – currículo tem, e está
fazendo um excelente estágio probatório. – Então,
1998.)
Mostrar Eisenstein para alunos do 2º grau, além da fruição
artística que proporciona, é estabelecer algum contraditório
na discussão cidadã que se dá à época
das eleições. Os meios de comunicação no
Brasil (ao menos as grandes redes de televisão e os principais
jornais) mais parecem porta-vozes dos governos, seja omitindo informações
de interesse geral que, divulgadas, abalariam seu prestígio popular,
seja alardeando como bombas (das do Enéas) simples traques de
espoleta.
L. F. Veríssimo (ZH, 30/08) comenta a respeito: “É
tudo perfeitamente moderno e democrático. Mas você devia
ouvir as histórias que correm no meio jornalístico, sobre
pressões de anunciantes e de Brasília para maneirar as
críticas e controlar a resistência ao Pensamento Único.
Isso quando a imprensa precisa de pressões para exercer a sua
vocação oficialista e sua adesão entusiasmada ao
Pensamento Único”.
O Encouraçado Potemkin relata a revolta dos marinheiros russos,
em 1905, contra o tratamento que lhes dispensavam os oficiais. Além
dos maus tratos físicos, ainda comiam carne podre. Na tomada
do navio, o líder dos marinheiros é morto. Seu corpo é
levado ao cais, atraindo a solidariedade da população
de Odessa. O exército é chamado a intervir e promove uma
carnificina entre os populares. O Potemkin revida bombardeando o almirantado.
A esquadra do Czar avança para destruir o navio rebelde mas,
quando estão próximos, alguém dentre os amotinados
grita “Irmãos!” e os marinheiros da esquadra abrem
passagem agitando seus gorros.
A cena nas escadarias de Odessa é considerada a mais antológica
das antológicas seqüências cinematográficas.
Enquanto os soldados descem as escadas matando o que encontram pela
frente, os cortes de câmera multiplicam o acontecimento, comentando-o
do ponto de vista dos oprimidos. A ditadura brasileira proibiu a exibição
do filme em 1964, só o liberando 16 anos depois – no pacote
da liberação dos filmes de sexo explícito para
o grande público.
Os clássicos são aquelas obras que permanecerão
– rumor em meio à atualidade incompatível –
após a crise das bolsas, a gravidez da Xuxa, a loira do Tchan,
a venda das estatais, o programa do Ratinho, desafiando “pensamentos
únicos” (quanta água por debaixo da ponte, hoje
temos a Angélica, incontáveis loiras/loiros e morenas/morenos
rebolativas/os, ainda o “custo Brasil” – para que
ralo foi o dinheiro das vendas? –, o programa do Ratinho...).
O Encouraçado Potemkin resistiu à quebra da União
Soviética e resistirá a Yeltsin. E nós, brasileiros,
se tivéssemos mais cultura humanística e cidadã,
também poderíamos resistir e, quem sabe, vencer àqueles
que nos oprimem. (Vencemos? Estamos em processo? Sabe-se lá.
Este texto cai, cai, cai num sonâmbulo buraco negro.)
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José
Carlos Fernández Queiroga © 2004 - www.lapandorga.com.br
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