:: Alegrete - Rio Grande do Sul - Brasil ::

 


Exílio e paixão

Em plena madrugada, quando a cerração escondia as sombras iluminadas pelas lamparinas antigas, as malas eram feitas às pressas e um carro estacionado nos fundos do prédio mantinha o motor ligado e o seu motorista parecia agitar-se o tempo todo. Através de um aparelho de comunicação, o homem era informado de que o general já iria descer e que o porta-malas deveria ser aberto imediatamente. A primeira parada seria a cidade fronteiriça de São Borja.
Tal como o francês e botânico Auguste Saint-Hilaire estivera com a sua expedição científica através daquelas paragens, o general Alfredo Stroessner, ditador paraguaio, que por mais de 35 anos dirigiu aquela nação, iniciava a sua fuga e o exílio no Brasil.
Em uma de suas anotações, Saint-Hilaire escreveria no livro de memórias sobre seu temor de nunca mais poder estar em companhia de sua mãe. Padecendo do desterro e muito próximo de sua eterna e sofrida velhice, o general viria a manifestar, tempos depois, sentimento igual pelo fato de não poder estar em solo pátrio.
Na sua exploração em terras gaúchas Saint-Hilaire ajudou a demarcar as fronteiras do Rio Grande do Sul e, antes de regressar à França, onde recebeu homenagens da Academia Real de Ciências, ele era condecorado com a Ordem do Cruzeiro do Sul, misteriosamente perdida em sua viagem de regresso.
Em uma de suas paradas para reabastecimento e descanso em terras sulistas, e em meio à campanha, que era castigada com um inverno rigoroso, o general se avistou com o prefeito de Alegrete, admirador silente, que lhe ofertou um pacote lacrado e contratou com o general que este deveria ser aberto somente nas proximidades de Brasília. A noite encobria aquele encontro furtivo, reclamado insistentemente pela mulher do prefeito que vira, intrigada, o marido sair, sabedora de que nem mesmo os bolichos e as casas de moças que acalentavam os velhos e carentes caudilhos estariam disponíveis com tamanho frio.
Protegido pela noite que encobria os seus vestígios, alguns quilômetros após, o general, que não atendeu ao pedido do prefeito, não só movido pela curiosidade, mas também pela incontrolada vaidade, abriu o pacote e se deparou com uma medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul. O silêncio que o general mantivera durante todo o trajeto foi quebrado por um soluço seguido de um choro desatado. Ninguém tivera coragem de perguntar ou mesmo consolar o velho ditador que, aos brados, ordenava que o carro parasse imediatamente. Desceu do veículo e deu ordens para que encontrassem o seu fardão para solenidades especiais. Vestiu o fardão. O cheiro no campo fazia lembrar que algum zorrilho estava muito perto, fazendo estimular as narinas dos passantes. Parado diante dos faróis acesos, o general era condecorado com a Ordem por um dos serviçais em solenidade testemunhada pela visão oblíqua de uma coruja e pelo fugidio cachorro do mato.
Alguns homens como Saint-Hilaire, pesquisador apaixonado que catalogou mais de cinco mil espécies de plantas em sua expedição, encontraram no exílio uma opção inevitável, porém, temporária. O mesmo não se deu com o general, que teve no exílio a sua única opção e a história do tempo marcou em sua pele, revestida de um câncer, as atrocidades que cometera contra um povo. A doença manifestou-se tempos depois desta solenidade e no mesmo ponto onde uma alfinetada no lado esquerdo do peito fez estalar uma bofetada do general no empregado que provocara tal incidente. Nunca mais aquela ferida cicatrizou e foi o começo da lenta e sofrida doença que o acompanhou pela resto da vida.
Entre os objetos que pertenceram ao general Stroessner, atualmente expostos no Museu da Ditadura na América Latina, em Brasília, encontra-se uma medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul, onde, em seu verso, estão inscritas a data de 1822 e as iniciais A. S. H..

Escrito entre 2001 e 2002
Revisado em 2005
Nicolau Balaszow
balaszow@yahoo.com.br

 

 
Cotações

– Só tu. Só tu mesmo para acreditar nessa gente. Não te ilude.
– Faz dias que eu quero falar com ele. Toco e ninguém atende o telefone.
– Eu te disse do quanto insistem quando querem alguma coisa. Depois, tu feito presa. Eles vão conduzindo da maneira que querem.
– Eles quem? Todos no geral?
– Está bem, especifiquemos. Afinal, estamos falando de algo que diz respeito a nós.
– Quer que eu cite o nome? É tão importante assim ou falta entendimento para saber a quem estou me referindo?
– Deixa assim, é melhor.
Ele pergunta-lhe: – Está ruim da tua úlcera? Por que não vais ao médico?
O outro em silêncio, sem mais vontade de manter qualquer diálogo.
– Sabes quando o copo chega na borda, transbordando, e tudo fica bem porque nada mais é do que um copo?... Mas nós somos humanos, e ao nos vermos em atrito... É bem verdade isso, do quanto o inferno se faz presente no outro.
– Não estou sentindo nada.
Eu vi o quanto, e que cada vez mais o ambiente ia tornando-se pesado. Que bom se tudo fosse resultado do humor e do aparelho digestivo.
Para muitos, ele se faz de sal, pedra que fervilha quando colocada na água.
Um dia o ouvi expressando o tamanho daquela frase do poeta, e depois alguém gravou em disco e por sinal ficou demais, a melodia e a voz dimensionando ainda mais, mais o quanto tem de significativo o verso... “Navegar é preciso. Viver, não é preciso...” Canto, mas só para mim. Penso – só para mim – que assim como navegar era tudo para os portugueses, muitas das situações que vivemos tem um preço. Vários preços, porque elas são muitas, e o não entregar-se tem alto custo. Devia era tirar contabilidade.
– Demorei para convencer-me de que vivia dentro de uma selva, esta selva óbvia da mídia e, claro, do pão de cada dia... – Ele: – Como? – Eu, sem ouvir: – Selva selvagem e que o bom tigre é aquele certeiro quanto ao seu alvo...
Mas isso tudo é tão vago e passageiro, digo – só para mim –, como o crescimento da massa quando misturada ao fermento. É breve. Portanto, calma, me sinto um pouco além dessa condição. Principalmente com respeito a esses que citam que “o povo é como boi de canga, bufa, berra, escaramuça... e volta a lamber a canga”. Assim usaram o verso de Antônio Chimango, um desses que assim mesmo, na canga, vê o povo, exalto-me: – E quando sai às ruas, busca nos olhares que passam a afirmação de que ainda está vivo.
– Bem, ganhei um presente. Vou-me para escutá-lo – diz ele, depois de longo instante. Diz mais:
– León Gieco, és um grande músico. Menestrel de tantos temas. Em “La memoria”, ele canta Chico Mendez, e em “Sin querer” os amores “que vienen e que van / abrazo, llanto e despedidas / sublime el sueño que me dejó en el lugar justo donde estoy”.
Despede-se.
E cada um de nós nos direcionamos para os nossos caminhos.
Ele grita meu nome. Volto e ele me dá um texto de Thoreau. Este:
“Não brigo com inimigos distantes, mas com aqueles que, aqui perto, cooperam com os que estão longe e cumprem suas ordens, e sem os quais os últimos seriam inofensivos. Estamos acostumados a dizer que a massa dos homens é despreparada, mas o progresso é lento porque a minoria não é substancialmente mais sábia ou melhor do que a maioria.
‘Não é tão importante que a maioria seja tão boa como você, mas sim que exista a verdade absoluta em alguma parte, pois isso irá fermentar toda a massa. Existem milhares de pessoas que se opõem teoricamente à guerra, e que no entanto, efetivamente, nada fazem para dar-lhe fim.
‘Qual é, hoje, a cotação de um homem honesto e de um patriota?
‘Eles hesitam e lamentam, e às vezes suplicam, mas não fazem nada a sério ou que seja eficaz. Esperarão bem dispostos que outros remediem o mal, para que não precisem mais lamentar. O máximo que fazem, quando o direito lhes passa por perto, é dar-lhes um voto barato.”
Thoreau... Terceiro milênio... – digo, mas só para mim.


 
Milagres

Sargão, o Antigo, era um homem sábio, não há notícias de um Novo.
Venceu Lugalzagisi, rei de Uruque, algoz de Urucagina,
e estendeu sua sombra à Capadócia.
Sargão, o Antigo, póstero de Menés-Narmer, Senusret e Meskalamdug, de Ur, como Mesanipada e Eanatum, era um sábio entre os sábios.
Em Gudéia, talvez, tivera justo avatar, não fosse seu ouvido interno.
O labirinto de Sargão, nem Urnamu, nem Utuhegal, tampouco Shulgi
ou Sumuabum, amorita e babilônico, ou Minos, ou Teseu, ninguém
que não Sargão, o Antigo, podia ouvir o sinuoso do pensamento íntimo.
Se cego fosse, e não, se mudo fosse, e não, Sargão, o Antigo,
porquanto ouvisse, e fundo, jamais perdia o mapa do rumo, e imperava.
Mas, dos céus escarpados de Zagros, Guti e Lulubi, hipogrifos,
aos milhares, hordas selváticas alvejam a fértil Mesopotâmia,
cripta hipocêntrica, crosta sanguinolenta dos gêiseres energéticos,
e até o fim dos tempos, está escrito, funesta arena, assim será.
Sargão, o Antigo, é morto, e não há notícias de um Novo.
Hamurábi, por certo, é o nome que se nos vem, o Código,
senhor de Amurru, Acad, Sumer, Larsa, Mari, a Assíria inteira, mas,
o Código, há o Código: fogo que queima que não queime, ordálio,
juízo divino: que Deus dê forças ao fraco contra o destro, se os sorrisos
àquele e não a este, da razão sorrir, a razão fervente do gume, o Código
da adaga com jóias engastadas, ora, Hamurábi! O Código
da usura, da iniqüidade. Mil vezes Mursil, Hatshepsut, Shaushshatar,
Artatama, Hatusil e Subiluliuma, claro, o Grande Hitita, grande,
quase como Sargão, o Antigo, porque de um Novo não se tem notícia.

Conheci una putana por nome Milagros, entre Florida e Corrientes,
sorriu-me a chapa inteira e eu a imaginei no copo.
Fomos ao Tortoni, chamou-me “Amor”, a noite mal começava. Essas,
essas de outra época, aleluia! Sábias como Sargão, porque, da vida,
sabem a conta exata: a sombra que se espicha, o gêiser, o ronco
e basta.



as horas

o relógio bate descompassado
ao olhar de nós mesmos
perdemos o passo
descuidados, pisamos nas listas da calçada
com a nossa infantilidade discreta
ah, se soubéssemos como nos amamos
passaríamos horas a fio a nos cuidar
e o espelho da alma refletiria no olhar
o que temos...
e o que não temos de acertar
2002

quando era criança
sentava ao quintal
de banho tomado
e de vestido branco com florzinhas
o céu parecia maior do que hoje
e as estrelas velhas conhecidas
hoje tento repetir a cena
sento no play-ground apressada
o banho tomo depois
pois o céu não se importa com isso.
não consigo reconhecer as estrelas
e a lua é cruel
como a nova síndica do céu
o que será que aconteceu com eles?
ou será que sou eu
que acho que cresci e de repente
tenho que ver tudo diferente?
Fundos

como fazer carinho
se as mãos cheiram tempero
o cabelo desalinhado
justifica a bagunça da sala
a vida vai conforme
o irritante compasso do relógio
nosso amor já sem cerimônia
até pula a janela
mas termina sempre sumindo
pela porta dos fundos...

Cristal

estamos fechados pra balanço
apenas colocamos as manguinhas de fora
e de vez em quando rola um agradinho
não esqueça de regar as flores no vaso
e colocar o jardim num belo vaso de cristal
o avesso é apenas um ponto de vista
e viver o maior desafio
para as secas criaturas
vindas do barro.

A sós

o escândalo do silêncio
em censurar a própria sombra
faz com que se dance a sós
entre quatro paredes
a madrugada chega
e as horas parecem boas anfitriãs
passam devagar a bandeja cheia
entre a solidão e a noite
existe um certo pacto
e eu sem saber de nada
completamente envolvida
faço de conta que ainda não sei
ser solitária e atrevida.

 
O Santo da Casa

São Jorge não foi excomungado da Catalunya. Pelo contrário, o Ogum das matas brasileiras abençoa as terras mais atéias da Espanha, católica desde os tempos de Isabel ou muito mais.
Seu dia é celebrado com grande festa. As ruas se enchem de pessoas, livros e rosas. Há música, representaçoes, bandas e fogos. As padarias vendem o “pa de San Jordi”, com recheio de queijo e “sobrasada”, uma espécie de calabresa em desmontagem, incrementada por colorante vermelho. Amarronzado por fora, o pão do santo é comido nesta data, igual comemos doces por Cosme e Damião.
Jordi é o nome preferido a ser dado às crianças. Há tantos Romários por aí quanto há muitos Jordis por aqui, sendo esse o nome do presidente da Generalitat, o mais catalão entre os catalães, o nacionalista Jordi Pujol.
Como em outras festas da nação catalã, em “Diada de San Jordi”, armam- se os “castelles”. São verdadeiro castelos humanos, formados por homens, mulheres e crianças, com calça branca e camisa na cor de sua agremiação.A base vai-se estreitanto até o topo, à maneira de piramide, cuja desmontagem resulta mais bonita, e não menos engraçada, do que a própria montagem.
Para montar o engenho arquitetonico da Casa Battlló, dizem que Gaudi se inspirou na lenda de São Jorge. Segundo ela, o dragão devorava donzelas, deixando-as em puro osso. Como o santo não queria ver morta a filha do Rei, lutou contra o dragão até matá-lo. Da ferida, escorreu jorro de sangue, logo transformado em rosa.
Pelo sim, pelo não, a obra de Gaudi, localizada no Paseo de Gracia, parece exibir a ossatura das moças na sua parte frontal. No topo, a espada e o chapéu de banda do cavaleiro Oxossi.
No dia de São Jorge, os homens oferecem uma rosa às mulheres. As calçadas ficam repletas de eventuais floristas, e os preços das rosas oscilam de banca a banca, pondo-se mais altos que nos dias normais.
Para compensar tanta sangria no bolso, as moças presenteiam um livro aos rapazes. Porque 23 de abril é também o dia em que nasceram ou morreram o Cervantes do cavaleiro Quixote e o Shakespeare dos reais romances ensangüentados. Estando de mudança, não pude multiplicar as horas para conferir quando morreu um, quando o outro nasceu. Santo de Casa não faz mesmo milagre, e deixo a ser morto esse monstro de duas cabeças.
Brazilona, maio 2001

  Crepúsculo

só eu escuto
o ruído rouco da chuva
a molhar as páginas
do Crepusculário
que entre amores e soluços
compõe uma antologia de Neruda

...e trovões afônicos
trazem tias de chinelas
puxando escapulários
num tempo sem asas

pouco a pouco
as luzes do crepúsculo
cedem seu espaço
à sinfonia escorrida da chuva
enquanto no outro quarto
a música é um ronco rústico

Alegrete, abril de 89


Asquerosas

Tanto sangro
Penso que é
Morcilha
Exacerbada

Te farei uma piscina
Das minhas lágrimas diáfanas
Mas as mortalhas fingidas
Não sei onde colocaria
Nem há espaço tão grande
Que possa tudo conter
Tanto remorso, tanta nevralgia...

– Não sei o que faço!

Jogo para cima, enterro embaixo
Queimo com as chispas dos meus olhos
Que tantas vezes te apreciaram...
Reciclo? Não, não adianta
Mesmo assim, sobreviverias

No céu, no inferno
Na pedra do meu sapato
Em todas as minhas alegrias
A cada verso malogrado
Tu reviverias
A atormentar-me com teu enfado

Quebro o orgulho ou o pescoço?
Corto o pulso ou a inflexão?
Quem sabe faço um esforço
E desenho um esboço
Da minha necrópsia herética...

 



Erre
O lindo do R
é que no sorriso
ele é dentuço





Metáfora do sono


Aquele menino que passeia por meu corpo
e faz quedar minha alma
colocando palavras
em meus lábios
que colore a folha em branco
está ausente

como o sol no eclipse

As metáforas estão longe

em vão
pego a caneta
e no sono irremediavelmente meu
tento fazer poesia
da minha unha encravada

Dedos estendidos

Sonho com teu rosto
como escultura
não tua face

o rosto
atmosferas de slides
toma ângulos diferentes
e envolve
como veludo

Rosto
o mais belo alucinógeno
para sentimentos desgastados
e retina dissonante
talvez

talvez



Neurastenia

Depois de tudo
Dia de faxina
Vassouras, panos
Almofadas

Tudo jogado
Junto ao lixo
Dos cristais
Que trincam meus sonhos

Lustrar, lapidar
Cada metro quadrado
Dos nerônios

Nesta triste delinqüência
Em que prefiro a rima
À razão
Entrego os verbos à caneta

Nada mais
– minha própria pele? –
Me domina
Suando no intervalo

E arde durante
O momento
Esquecendo
As cadeiras de balanço

Persona

coitadas das palavras não ditas
vogais que estripam a sociedade
no momento
o marasmo me transforma: flagelo social

quisera de cada cronológico minuto
aventura
rogo à máscara jovial
à transparência das válvulas neurológicas

altar das deusas?
pobre espelho
retrato minucioso jazendo aos meus pedidos
espaço concorrente
atmosfera gráfica




Pétalas

Estou aqui
Nuvem perdida
Ilhada
De estrelas sonoras entre bombas perfumadas
Para abastecer viajantes
Anjos demônios
Entrecruzando-se
Na linha infinita
De ilusões realidades necessidades
E pontes da saudade
E assim mesmo a todos abasteço
Alimentando-me de números recheados de ordem de frete
E cheques que voltam sempre
Tenho medo!
Que jacarés elefantes tigres
A diesel movidos sono solto alta madrugada
Despertem por
Sombras armadas
Roubos tiros mortes
E nunca o flagrante para sempre estraviado
Ah, solidão!
Meu coração – até o louco! – me deixou
Pela ternura urgente fugaz formosura
Ternura não volta mais...
Formosura quer prova...
Dos nove? Sentimento matemático?
Mas estou talvez...
Estraviado por minha vez
Perdido
Atrás das teclas do imóvel caixa
Na faixa veloz
Nas pétalas da página
Que não acaba não acaba não...




Fiat Lux
e a luz se fez
ZAP
num instante tão leve e puro
falar sobre poesia é o mesmo
que fazer poesia no escuro

O vento não pára
embora estejamos à deriva
vagando em espaços plausíveis
perdidos no estreito vão de dois seios

Todo o mundo não se compreende apenas entre
nossas insônias dispnéicas
e nossos prazeres cacofônicos
Aquele mundo é vasto
e o canto belo

Se estamos bêbados,
nos embriagávamos de infinitos
infinitos enclausurados em ‘pequenas’
porções de matéria
que deixamos vazar por entre os cantos das bocas

Se, às vezes,
negligenciamos nossos sentidos
é para tentar achar
uma atitude
que justifique
nossos gozos imperfeitos

Se a gente é jovens
a gente é doidos
doidos por momentos perfeitos
que se acabam com
a morbidez de uma
lágrima
solitária

Insônia

mordaz insígnia gritando em segredo
apregoada por entre as pálpebras
sobre fachos de putrefata luminosidade
pulveriza sonhos e coragens ufanistas

Asteísmo

essa destreza que fascina
deslumbra, corrói
soa como o quociente
de sinistras equações fundamentais
percorre os sentidos
sentimentos
derramam-se em vestígios de nuvens
que lacerarei em seus lábios

 
Perdas

O velório começara há quase cinco horas. O cruzar e descruzar de pernas concretizava uma bela coreografia aos visitantes que iam chegando, trazidos pelo frio. Muitos não conheciam o falecido, tampouco tinham sido vistos antes no vilarejo. Mas é inegável que se podia sentir o calor humano no local e solidárias lágrimas rolavam na laje vermelho-terra.
Era tocante ver, pela fresta na parede, a revolta nos olhos do rapazote que, além de tornar-se órfão sem aviso-prévio, não poderia assistir a Terça-Nobre naquela noite; ingrata imposição social.
Mas, nem isto ou o café requentado, conseguia mais manter as pessoas despertas e, num impulso, apenas a viúva, excitada pela imagem do marido morto, se encontrava trancada na escuridão do seu quarto, entre lembranças...
Os convidados, atemorizados por uma possível tentativa de suicídio, esmurravam a porta e só obtinham gemidos como resposta.
No pandemônio que se formou, “Ts” elétricos achavam novas donas, “bolsas” guardavam xícaras de café e “bocas” enchiam-se dos poucos salgadinhos que sobraram, que têm de sobrar...
Mas, não só na casa a tristeza era desoladora. Na esquina, entre um cliente e outro, Helô escondia seu pesar na pochete, misturando suas lágrimas com as notas mal cheirosas...
E sei a indefinível dor que sentiriam os poetas se ouvissem o eco do pequenino pranto, que, agora órfão, transformava-se na mais sombria melodia. Sim, a criança sofria, pois, com certeza, pressentia que só lembrariam de dar-lhe seu “engrossado” após os serviços fúnebres.


 
gado urbano

os meteoros, há pouco colhidos do céu campestre,
alimentam minha fome, nesta noite surreal
na fronteira oeste, em alegrete, rio grande do sul

da janela, já entre as grades,
qual gado ao pasto, perante os arames-farpados,
contemplo o vaivém das gentes
que contribuem com a previdência
que votam no melhor sorriso
que cantam nosso vernáculo hino
que debatem futebol e os atentados no oriente médio

vejo as crianças, ainda à rua,
debulhando pulcritudes
em meio a um canteiro de flores ociosas:
ah, estas amáveis crianças
que zombam do poeta!

a vida segue sua jornada trivial
indo do nada a lugar nenhum

o operário chega às sete
em casa, depois de erguer o futuro
que não é o seu e que jamais será dos seus

o peão, tão-logo avista a cidade, vai à cata dos víveres
que irão lhe manter em pé, apto à rusticidade,
à química dos inseticidas e à física que lhe vilipendia vinténs

o professor apressa-se para sucumbir ao pó do giz
enquanto discorre sobre um ponto de distinta literatura
que é contemplada com bocejos e soluços de escárnio

os bêbados, estes sim, têm razão e porquês de sobra
para fina e indefectível essência populista:
bebem e vomitam, à mercê das horas, do tempo
sem ter de recitar pais-nossos
e afinar-se ao coro dos contentes

o casal de namorados oculta-se, felicíssimo, entre as plantas
como se deslizasse, em pleno lago, a bordo de vitórias-régias

a vida passa como um filme sem fim:
tédio e felicidade seguem a mesma trilha rumo à simbiose, o juízo final
e, assim, vai-se a noite, indiferente à minha mendicância
e indisposta a aceitar o verso amotinado na dadaística visão do poeta
aqui, em alegrete, no seio desta imensa mas exígua fronteira estomacal
(a 09.06.2003)


a cidade

encaramujados
os sonhos amotinam-se face à utopia

as goteiras choram suas quimeras
e a poesia coagula, no porvir, sua ferrugem crônica

por que, então, os gritos
se o silêncio conforta e acomoda?

o poeta, assim, sucumbe: definham-se seus quintanares
vê-se, ao longe, a constituição conspurcada
em cada sorriso poliaciado pela fome, censurado pela pobreza
à margem do rio poluído de crenças velhacas...

casas são como sepulcros, aos milhares,
superlotados de mortos-vivos
coabitados de raros motivos

a rádio dispara os ecos do passado,
num cotidiano febril e lucrativo,
e funde cidade e campo
com seus vícios de linguagem

ah, não obstante, em ti, até o caos se abranda!

todavia, agiganta-se a tortura moderna, online ou teleguiada,
enquanto rastejam indigentes, diplomados,
por tuas diplomáticas vielas

o estrume do cavalo, à rua,
é verde como o campo, como a bandeira
como o dólar metafórico que aniquila o pib

o cereal político nasce sobre o asfalto
por onde escoa a esperança
lá, onde o suor, um dia, fluiu como um oceano bravio
(em 18.06.2003, num dia nublado)

campo afora

os arrozais aprimoram-se
em silêncios profanos
o gado, manso gado, pasta, a esmo,
os porquês do que é concebido no verde
o ruralista aguça a pressa, monetária e réstia,
deslizando sobre a hóstia de suas verborragias
enquanto isso, a peonada festeja a alforria
junto às eternas cercas de pedras
neste campo cinza e, ainda, vermelho












cidade adentro

atravessa as avenidas do tempo
o espectro do sonho: a tal esperança
há gente ao redor da praça
- ah, a inevitável e previsível praça:
o chimarrão em punho
o verbo saltando, maltratado, de boca em boca
enquanto a utopia circula, em sentido anti-horário,
e os motores doentios anunciam o ócio eterno

 
Messe

no agosto
o vento soprou forte e frio
tua voz ficou rude e destemida
do rosto do homem
na miséria da rua
fizeste
em ti
um canto de revolta
as veredas da rua te afundaram vales
e viram teu olhar comprometido
tua voz ecoou na coxilha e na várzea
e fizeste teu canto
o dos oprimidos
partiste em busca de foices nas lavouras
e o trigal balançou espigas maduras

punhos cerrados vibram no ar e te seguem
para quebrar os elos das correntes

haverá mais pão e riso na criança
e a paz fecundará o arrozal na safra
o homem da terra
com olhar de outono
sorrirá contigo
na festa da colheita

1962


por um punhado de merda

se a bolsa de chicago está em alta
estranhos vaga-lumes
enormes
se mexem
às 4 da manhã

se united states steel co precisa ferro
formigas podadeiras rasgam o peito
da américa
às 4 da manhã

a literatura nacional enriquecida
contratos
promissórias
cartas de recomendação
falcatruas
dividendo
é a grande percentagem
às 4 da manhã

o político berra e segue acionista
dos bancos internacionais
teixeira coqueia mais 100 sacos no galpão
às 4 da manhã

afinal
a bolsa de chicago está em alta
sacolas de quitanda se dirigem
ao mercado
às 4 da manhã

os homens se inimizam
matam e morrem
se acidentam
roubam e saqueiam
deixam histórias tristes
sujam glórias antigas
às 4 da manhã

entregam o jorro negro
a pesquisa e o refino
com leite negro
mais filhos mamariam
às 4 da manhã

assim vais américa gigante
de filhos batráquios
porque a bolsa de chicago está em alta
às 4 da manhã

centenas de insetos virabostas
tudo entregam
o que é ouro
o que é beleza
o que é esperança nos filhos
por um punhado de merda
dos gringos estrangeiros
obrigam meu filho
à tenra idade
sujeitar-se à escola
para que
aos 12 anos
seja mais 100 k de ferro
na indústria da guerra
às 4 da manhã

fev/1977

(messe e por um punhado de merda
foram publicados em
Sedimentos da Manhã,
de 1985)


93.


Hoje, Maria-manhã,
vamos transgredir o azul de Portinari
e denunciar essa cor morena
de nossos corpos mulatos.
E, o mesmo, faremos com o amarelo de Van Gogh,
que tisna a boca de nossos filhos,
em nosso vilipendiado continente,
que nos legam os liberais burgueses.

Hoje, Maria-manhã,
quando vens com teu sorriso aberto,
num tempo em que germinam as sementes
que plantamos, e ainda, restos antigos
intimidam nosso passo,
nós temos a visão dianteira da vida
e partimos com a ameaça, em riste,
de nossos braços.

Hoje, Maria-manhã
não existe nada de impeditivo nisso,
nós, simplesmente, pegaremos nossos pincéis
e pintaremos teu sorriso,
vamos despejar nossas tintas em tua boca
e pelos trechos de teu rosto onde ele se pronuncia
com a expressão alegre que tens.

Hoje, Maria-manhã,
tu encontras, vicejando, as auroras que semeamos,
num tempo que, clandestinamente,
percorríamos as galerias da noite espessa
com nossas tintas nos muros,
despertando forças novas, para que pudesses
acordar sorrindo.

Hoje, Maria-manhã,
quando iniciamos um novo tempo,
que promete abrir o horizonte,
façamos um compromisso para o amanhecimento:


empresta-nos teu ventre
para plantarmos as sementes
que conduzirão o mundo para frente.

Hoje, Maria-manhã,
seja dia de sol ou faça frio e as mesas
estejam empobrecidas,
essas coisas não serão impedimento
para pintarmos teu sorriso
com as cores da esperança
que se assanham em nossos olhos.

26/02/03
(Este poema é parte
do livro Nós,
a ser publicado
brevemente)

 
 
José Carlos Fernández Queiroga © 2004 - www.lapandorga.com.br
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